Fogo no business em cima do muro

Elis Ponce
4 min readMay 31, 2020

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foto: @doentespfutebol (twitter)

Eu preciso escrever uma carta de motivação para uma oportunidade, mas eu tenho raiva. Não é possível ter motivação no Brasil, não vendo o que aconteceu em frente ao STF livremente e o que foi reprimido na Avenida Paulista. Não será possível hoje. Eu acredito na política, nunca deixarei de acreditar. Eu acredito na humanidade e quero nunca deixar de acreditar. Eu queria não acreditar no que vejo nos jornais todos os dias, mas infelizmente eu acredito. Eu queria acreditar que as pessoas sabem a importância do que dizem, do quanto falas preconceituosas, racistas, machistas, classistas, xenófobas machucam. Eu queria que as pessoas entendessem isso e eu sei que elas entendem e justamente por isso continuam falando.

Eu quero que o ambiente profissional e pessoal não se distanciem, que se posicionar numa rede como o Linkedin não tenha que ser feito somente da forma business, mas que a gente veja alma e verdade e raiva, porque é isso o que sentimos. Se você não sente, não se posicione, não faça isso só pra ser socialmente correto ou parecer aliado, parecer responsável, parecer parte de uma rede de empresas e profissionais que realmente estão preocupados, faça-o se for verdade.

Porque todo dia enquanto tantos se posicionam aqui somente no “business pelo business” e parecem falar algo importante porque o formato está bonito, a essência ainda marca que milhares de profissionais negros são julgados todos os dias pela sua aparência, por quem parecem ser e não pelo que são. Milhares de currículos ficam em cima da mesa eternamente porque, mesmo que tenham custado suor e sangue para chegar naquele ponto, não são o padrão.

Se você se cala em situações de injustiça você está do lado do opressor, mas se abre a boca somente para ter a imagem de aliado, eu preciso te dizer também: NÃO SERVE!

Política está em tudo, nossos valores devem estar em tudo e não só por isso eles precisam ser maquiados e perfeitos, eles precisam ser eles, eles precisam ser crus, eles precisam ser reais. Quando falamos que cada vez mais nossa geração esta mudando, que precisa ser um exemplo, que vem trazendo muito mais questões pra dentro do ambiente de trabalho, eu também te lembro: é bom, mas ainda não é o bastante! Não será o bastante até que possamos dizer isso livremente, até que as amarras do profissionalismo quebrem e nos libertem de termos que parecer compenetrados e “ser profissional” seja um sinônimo de indiferença, de repressão, de medir as palavras o tempo inteiro, de subordinação cega e surda pra questões importantes para “não manchar a imagem da empresa” porque “clientes podem ter opiniões contrárias”, porque “não sabemos como as pessoas vão reagir”, “porque nossos lucros podem baixar”.

As empresas de verdade precisam se tornar realmente de verdade, os profissionais precisam lembrar que costume de casa PRECISA ir a praça e se expressar, não sofrer represálias, não temer o futuro porque pra “ganhar dinheiro não posso me posicionar em certos assuntos”. Se você ainda está nessa lógica involuntariamente, eu te sinto, sinto muito, mesmo! E entendo, seja você empregado ou empregador, pois o medo e a necessidade nos fazem recuar muitas vezes. Existem muitas coisas na balança a serem consideradas, mas essas não deveriam ser algumas delas.

Como profissional eu quero ser reconhecida pela pessoa que eu também sou nos meus grupos de amigos, na minha família, nos lugares que eu me sinto mais à vontade. E não, não me venha problematizar regras sem importância de escritórios renomados, usar roupa social aqui não é o problema, trabalhar de 9h às 17h não é o problema. Se isso é o que você entendeu até aqui não sei se daqui pro final as coisas conseguirão ficar mais claras, pois eu já disse o mais importante.

Escrevo agora para me lembrar sempre de quem eu estou lutando pra ser e espero que isso também te ajude a lembrar. Profissional e pessoal não se desvinculam quando se trata de essência, profissional e pessoal não podem se desvincular quando se trata de luta, de justiça, de garantia de direitos e liberdade de expressão. Por que você luta na vida pessoal por tudo isso e não pode lutar no trabalho? Manter um ambiente “saudável” não é manter um ambiente tolhido. Precisamos evoluir muito, é verdade, mas não conseguiremos isso afirmando essa necessidade somente nas nossas cabeças se nos atos continuarmos fingindo que está tudo bem.

Eu quero contribuir, independente de por onde minha carreira vá seguir, para que possamos ser melhores como sociedade e não posso fazer isso calada. Vamos ser realmente quem esperamos ser, quem daria orgulho a quem nos vê e também a nós mesmos, ter a consciência limpa. Vamos agir verdadeiramente como parte de uma sociedade que se lembra que somos iguais e não subjulgua nossas diferenças.

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Elis Ponce

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